No fim da madrugada de sábado para domingo (10 para 11 de dezembro de 2011) fui dormir com forte e desagradável sentimento de injustiça. Explico: Nessa noite de sábado aguardava com paciência oriental (herança de família) pela luta principal da noite no UFC 140: Jones vs Machida. Assumo que também me incluia entre aqueles que acreditavam que o Lyoto “The Dragon” Machida seria o único de sua categoria capaz de tomar o cinturão do então jovem, mas extremamente criativo Jon “Bones” Jones. Aliás, se fosse possível apontar um lutador que, de alguma forma, personificasse a evolução do MMA, esse lutador seria, sem sombra de dúvida, o próprio Jon Jones. Trata-se de um lutador que praticamente “passeia” pelas várias modalidades do esporte (Boxe, Muay Thai, Wrestling, Kickboxing, entre outras) com grande desenvoltura e beleza estética. Isso sem falar em sua impressionante capacidade de colocar em prática golpes e técnicas pouco usuais, fato que lhe rende status de showman.
Do outro lado, nosso karatê kid Lyoto Machida, nascido em Salvador, mas crescido em Belém do Pará, filho de uma baiana com um japonês mestre em Karatê. Toda vez que entra no octógono Machida é um legítimo representante do Karatê Kyokushin, uma modalidade que prioriza o knock out com um único golpe e de grande força. Em combates, essa modalidade é de grande utilidade. É de conhecimento de todos que Machida sempre foi mais de contra-ataque, isto é, de inicialmente esperar por algum movimento de ataque do seu oponente para, em seguida, reagir de modo mais adequado. Na realidade, esse traço acaba por revelar mais uma espécie de perfil do lutador. Outra característica que lhe é peculiar é que seus oponentes dificilmente o “encontram” no octógono. Possui uma capacidade de esquiva bem acima da média dos oponentes de sua categoria.
Vamos ao combate. Resumo do primeiro round: Pela primeira vez na história do UFC um lutador vence um round contra o, até então, inabalável Jon Jones. Machida “encontrou” Jon Jones várias vezes (umas cinco ou seis) no round, sem poder dizer o mesmo para Jon Jones. Esse não conseguiu encontrar Machida nem uma vez sequer! Tentou de tudo: socos, chutes altos, baixos, rodados. Para não dizer que não acertou nenhuma vez, Jon Jones deu um chute no braço de Machida. E mais nada. Por esse motivo Machida conseguiu algo inédito: surpreendeu Jon Jones a ponto de deixá-lo visivelmente assustado em vários momentos do primeiro round. Dias depois da luta, veio a público que dois (dos três) juízes laterais lamentavel e inexplicavelmente marcaram 10 a 9 nesse primeiro round para Jon Jones. Mas Machida fez, e estava fazendo, história.
No segundo round, Machida consegue mais uma vez surpreender Jon Jones mas, num momento de descuido, deixou Jon Jones derrubá-lo com double lag e infelizmente uma cotovelada entrou provocando um corte profundo na testa, já dando sinais de que essa luta poderia ter um desfecho desagradável. Posteriormente, Machida chegou a dizer que sua visão, em razão desse golpe, havia sido prejudicada. O juiz interrompe a luta para avaliação médica e nada de anormal foi constatado. Após o reinício, os dois golpearam-se quase que simultaneamente, mas Machida levou a pior. Resultado final: Machida foi finalizado na grade, em pé, com uma guilhotina que, admito, nunca tinha visto antes.
O problema, do meu ponto de vista, não está tanto no fato de Machida ter sido finalizado ou de ter perdido a luta, mas no que se sucedeu. A regra do UFC diz que em caso de estrangulamento, se o lutador não desistir com batidas no chão do ringue (com os pés ou com as mãos) ou verbalmente, o juiz deve intervir e será decretado o fim da luta. Ao perceber que Machida estava “apagado” de pé, o juiz faz, corretamente e no tempo certo, a intervenção e o fim da luta é anunciado. Em seguida, Jon Jones, com desdém e desleixo, solta o corpo do atleta que já estava “apagado”. A luta já estava encerrada! E quando o árbitro encerra a luta é para preservar a integridade do atleta. Por meio de uma consulta rápida ao dicionário pude constatar que a palavra integridade está precisamente definida como qualidade de alguém ou algo ser íntegro, de conduta reta, pessoa de honra, ética etc. Ainda que tudo tenha ocorrido dentro das regras, achei que Jon Jones faltou com respeito, não foi justo, diria, com Machida.
Mas isso soa estranho, não é? Como algo pode soar injusto, se não desrespeita as regras? Aliás, o que vem a ser justiça? O que os filósofos têm dizer sobre isso? Não tenho, nem de longe, a pretensão de abordar em toda a sua amplitude o conceito, a idéia de justiça, mas o que alguns pensadores já escreveram sobre isso?
Há aqueles que a entendem como uma virtude, há outros que a entendem como uma espécie de sentimento, desejo, há também aqueles que entendem como um conjunto de princípios e aí a coisa vai longe.
Se nos atentarmos para a idéia de justiça na qualidade de um sentimento, esse seria próprio da consciência humana, no sentido de que somos todos dotados da capacidade de discernimento (saber diferenciar o “bem” e o “mal”, o “justo” do “injusto”). Mas, segundo Chevallier (Jean-Jaques), não existem coisas tais como o bem e o mal. Adjetivos como o bem e o mal só servem para referenciar ou dar algum sentido àqueles que o empregam. Para ilustrar melhor, o que chamamos frequentemente de valor das coisas não trata especificamente sobre o que elas (coisas) carregam, mas sobre o que depositamos nelas. Dizer que algo é essencialmente bom ou mal é cair no auto-engano, uma vez que o ato de dizer não equivale a uma prova ou demonstração rigorosa. Dessa maneira é estranho dizer que é possível conhecer, em absoluto, a essência de algo.
Por outro lado o jusnaturalismo (ou direito natural) apresenta uma outra proposta para a idéia de justiça. Thomas Hobbes sustentava que o estado natural do homem seria o de guerra. Nesse sentido, todos os homens seriam naturalmente iguais. Para a satisfação dos instintos mais básicos, valeria tudo, inclusive o aniquilamento dos outros, pois esses seriam sempre uma ameaça. O interessante a notar aqui é que, nesse contexto, não pode haver injustiça dado que não há leis. O que prevalece, nesse caso, é a liberdade de todos preservarem a sua existência vivendo de acordo com aquilo que se convencionou chamar de direito natural.
Aqui um ponto começa a ficar mais claro: começa a se estabelecer cada vez mais a idéia de justiça que será amplamente aceita e utilizada até os dias de hoje. A idéia de que justiça/injustiça está condicionada, isto é, só pode existir num mundo em que há lei(s). Do contrário, não é possível caracterizar o que é justo e, consequentemente, o que é injusto.
Mas, ainda sim, acho que tem algo de estranho. Será que um sentimento de injustiça deixaria de emergir em alguém pelo simples fato de inexistir uma lei? Segundo essa idéia, não seria possível falar em injustiça. Mas a idéia de justiça está baseada também em uma espécie de sentimento, desejo. Portanto, a inexistência de uma lei não é capaz de impedir que um sentimento de injustiça floresça. Em alguns casos pode-se, inclusive, sugerir exatamente o contrário.
Em tempos mais atuais, Kelsen prefere pensar a justiça como uma felicidade social, como se fosse fácil definir felicidade. Para uns é uma coisa, para outros vem a ser outra. Para alguns, pode se tratar de um conceito mais materialista enquanto que, para outros, a felicidade pode ser, na realidade, a infelicidade de outros. Dinheiro, bens, emprego, esporte são alguns exemplos, de modo que a idéia defendida por Kelsen também apresenta problemas.
Assim, fica complicado chegar a um consenso sobre o significado da palavra justiça (também não sei se esse seria o caso) e podemos perceber que diferentes sentidos foram sendo atribuídos para essa palavra ao longo do tempo.
As, com relação ao meu mal-estar do início desse artigo, só posso afirmar que, mesmo sem saber precisamente o seu sentido, senti-me, naquela madrugada, incomodado e com um profundo sentimento de injustiça...