sexta-feira, 16 de março de 2012

Velasquez, Cigano e Montaigne

Na sexta-feira, 11 de novembro de 2011, voltei mais cedo do serviço. Um pouco ansioso, eufórico, talvez. Vim pensando na luta do Velasquez contra Cigano, no sábado. Assisti à pesagem e percebi demasiado respeito entre os lutadores que, para um cara esquisito como eu, deu margem para suspeitar de algo estranho...


Cain Velasquez: americano com orgulho de suas origens latinas cravado no próprio peito com tatoo (“Pride” = “Orgulho”). Wrestler, extremamente forte e indubitavelmente merecedor do título mundial dos pesos pesados. Será sua primeira defesa de cinturão após um ano afastado em razão de uma cirurgia no ombro.

Cigano: brazuca, striker, excelente boxer com raízes no Jiu-Jitsu e de enorme força bruta.

O detalhe que não pode ser, de modo algum, ignorado é que ambos estão invictos no UFC. Seria virtude? Mas o que vem a ser virtude? Não há consenso sobre essa acepção. Para Montaigne, deve ser pensada como uma atitude, uma ação, com a característica de ser um fim em si mesmo, isto é, sem a pretensão de se esperar algo em troca de alguém. Como assim? Posso, por exemplo, decidir parar de fumar logo após um ataque do coração. Nesse caso, não faz sentido supor que essa decisão está sendo tomada na esperança de se obter, futuramente, algo em troca de alguém. A natureza dessa decisão, nesse caso, a de parar de fumar, constitui, por assim dizer, um fim em si mesmo. Por outro lado, se, por exemplo, compro presentes para alguém, como provar que, por meio desse ato, não estou esperando, futuramente, algo em troca dessa mesma pessoa? Nesse caso, fica difícil comprovar que essa atitude constitui um fim em si mesmo e, portanto, para Montaigne, é, no mínimo, improvável acreditar que distribuir presentes por aí seja uma virtude. Mas a palavra virtude pode receber, e de fato recebe, outros contornos, a depender de quem a emprega...

Mas supondo que nossos guerreiros tenham lá suas virtudes, essas serão precisamente aquelas que, segundo Nietzsche, combinam com as inclinações e traços pessoais e mais profundos desses lutadores. Ah! Há algo de belo em procurar suas próprias virtudes. Nesse caso, quais seriam suas virtudes?

Motivado pelo orgulho de suas origens e com sua força bruta, é perfeitamente possível consagrar-se campeão mundial, como parece ser o caso de Velasquez. Esses são, aliás, os combustíveis ideais para tal missão, uma espécie de condição sine qua non. Mas para manter-se no poder, são necessários outros traços e inclinações que aparentemente Velasquez não demonstrou possuir em seu olhar, ao adentrar no octógono. Uma coisa é reunir as condições para ser campeão. Outra é possuir características e condições que permitam, além de tornar-se campeão, continuar campeão. Nesse último caso, são mais raras, ainda, a reunião de todas essas características. Isso significa que é necessário mais do que força bruta e orgulho para manter-se no poder, campeão.

Início da luta: Velasquez tenta um chute e Cigano devolve com a direita. Em seguida, ambos os golpes anteriores ocorrem simultaneamente. Novamente, Velasquez e Cigano tentam os mesmos golpes mas, dessa vez, sem sucesso. Cigano tenta um “pisão” com o pé direito e Velasquez quase o derruba. Novamente Velasquez tenta um chute e Cigano devolve com um soco (esquerda). Em seguida, algumas tentativas de “trocação”, mas sem êxito. Quando marcados 55 segundos de luta, Cigano, com um petardo de direita, apresenta, pela primeira vez ao grande campeão Cain Velasquez, o chão. Aí foi só colocar em prática algumas regras de etiqueta e deixá-los (Velasquez e o chão) um pouco mais a vontade...

Mas, em que bases o nosso novo campeão Cigano chegou lá? Quais foram as suas motivações? Só o tempo dirá...

B. J. Penn vs Nick Diaz


No UFC 137 tive o privilégio de acompanhar a luta entre B. J. Penn e Nick Diaz. Essa luta ou, mais precisamente, a maneira como ela se desdobrou passou a chamar minha atenção por um tempo, diríamos, assim, além do normal. Volta e meia, me via pensando ainda sobre ela. Não era nem tanto pelo resultado que, aliás, também estava de acordo. Mas, acredito que tenha sido, talvez, por ter-me sugerido (ou até mesmo revelado) algumas coisas de grande valor desses dois lutadores, e que não podem, de forma alguma, passar despercebidas.

Sobre isso, Nietzsche já nos alertava que “a fineza, a qualidade e a elevação de uma alma são perigosamente colocadas à prova quando passa junto a ela algo que é de primeira categoria, mas que ainda não é protegido de garras e grosserias impertinentes pelos estremecimentos da autoridade”. Dessa maneira, deixar de reconhecer, nem mesmo destacar, os possíveis significados daquela luta constitui ato de baixeza ou falta de elevação moral. É como se algo venerável e de grande valia passasse repentinamente ao seu lado sem que você seja capaz de perceber.

Nick Diaz, atualmente com 28 anos, vem do Jiu-Jitsu (equipe Cesar Gracie) mas, como se diz na gíria, com o Boxe do lado. O que para alguns pode parecer um defeito ou ponto fraco, a mim apresenta-se mais como uma característica peculiar o fato de boxear com guarda baixa. Não está sob discussão, aqui, a importância de se manter sempre a guarda erguida em um combate. Mas, se um lutador profissional mantém esse hábito a ponto de torná-lo uma característica pessoal seria necessário, ao menos do meu ponto de vista, tentar entender a(s) razão(ões) que levou(varam) à formação dessa particularidade.

Não seria exagero algum afirmar que Nick Diaz se enquadra na categoria do que se entende por garoto problema. Pelo contrário. Seria, inclusive, o mais adequado. Faltou seguidamente em duas sessões públicas da promoção do evento (foi cortado e substituído por outro lutador, mas, logo em seguida, re-convocado, pelo fato do outro lutador ter se machucado), já foi pego no antidoping (maconha) alegando, ainda, no Los Angeles Times, que se sente bem fumando maconha e que bebe uma quantidade considerável de água para passar nos exames antidopings.

Uma coisa é certa: quando um tipo de comportamento (geralmente não aceito) é colocado em prática por uma pessoa que é capaz de sustentá-lo ou assumí-lo, inclusive com certa naturalidade, isso é, na realidade, sinal de força. Essa força é percebida na medida em que os ataques, sob a forma de opiniões externas, não são capazes de derrubá-lo, ou ao menos de intimidá-lo no sentido de criar uma expectativa de perigo iminente. Ao perceber e tomar consciência dessa força, certas características normalmente valorizadas como, por exemplo, a prudência, passam a não ser tão bem-vistas ou desejáveis por essa pessoa. Talvez, até mesmo, venham a ser interpretadas como um ponto fraco. Assim, em razão dessa percepção de sua força (e não por deficiência) é que Nick Diaz dá-se frequentemente ao luxo de boxear com seus adversários com guarda baixa.

No caso de B. J. Penn, é sabido que se trata do primeiro não-brasileiro a se tornar campeão mundial de Jiu-Jitsu. Havaiano, filho de milionário e lutador, nunca houve, aparentemente, necessidade de buscar dinheiro. Mas, ao que tudo indica, sempre houve uma necessidade de se buscar alguma outra coisa. Necessidade (in)consciente de desafios? De provar algo? Para quem? Do contrário, porque ser campeão mundial de Jiu-Jitsu? O primeiro não-brasileiro? Porque a carreira de lutador de MMA? Provar o que? Força? Independência? Saber caminhar sem ajuda da família? Na noite do UFC 137 (29 de outubro de 2011), B. J. Penn passou por uma importante experiência de provação.

Resumo da luta: Três rounds de franca trocação e de total entrega de ambos os lutadores à nobre arte (Boxe). Até houve uma tentativa ou outra de levar a luta para o chão (suas especialidades), mas nada que pudesse colocar em descrédito a afirmação feita na frase anterior. Foi mais ou menos como se nossos guerreiros tivessem assinado um contrato, lavrado em cartório, comprometendo-se em não levarem a luta para o chão. Não sei não...mas deu margem para isso...

Mas não posso deixar de destacar que Penn, ao se expor e, consequentemente, se submeter a tamanha punição sem recorrer às suas ferramentas e técnicas mais preciosas e afiadas, ou seja, ao abrir mão de lutar dentro da sua zona de conforto, mostrou ser forte, no sentido mais nobre que essa palavra pode possuir. Ao se sujeitar a essa desnecessária humilhação, ainda por cima fora da sua zona de conforto, demonstrou possuir forças para caminhar sozinho e desarmado no vale das sombras e do medo até o fim. Ao sobreviver até o final da luta, em pé, com a guarda levantada e ainda boxeando, Penn passou por uma provação de vida. Perdeu a luta, porém (consciente ou inconscientemente) exorcizou um velho demônio.

Nate Diaz, Donald Cerrone e Nietzsche


No UFC 141 (Lesnar vs Overeen) assisti a uma luta que, pelos seus contornos, esperava algo próximo de um épico do tipo Shogun vs Henderson (UFC 139). Mas o que assisti foi algo bem diferente. Teve de tudo para que essa luta pegasse fogo. Estamos falando de Nate Diaz (isso mesmo, o irmão mais novo de Nick que, inclusive, luta de forma semelhante) contra o cowboy Donald Cerrone, oriundo do Muay Thai. Já na coletiva houve uma provocação do Nate Diaz (parece que é de família, mesmo). Bem na hora de tirar a foto deu um tapa no lustroso chapéu do cowboy e, para variar, o circo estava montado.

Provocações por parte da família Diaz sempre me sugeriram necessidade de auto-afirmação. Mas, para saber mesmo, só conhecendo-os melhor.

Imaginei que, em razão desse desrespeito, a luta tomaria outro rumo. Nate, assim como seu irmão, é especialista na luta de chão (faixa preta de Jiu-Jitsu com Cesar Gracie) e demonstrando evolução na luta em pé (Boxe). Por outro lado, o cowboy Cerrone, especialista na luta em pé (Muay Thai) com conhecimentos de Jiu-Jitsu. Devo mencionar também que são dois lutadores em franca ascensão e com chances de disputar o cinturão da categoria.

Mas o que se passou dentro do octógono foi algo bem diferente e, do meu ponto de vista, totalmente inesperado.

A luta transcorreu toda de pé e praticamente só Nate Diaz bateu. Cerrone apanhou o tempo todo apenas com jabs e diretos e de vez em quando passava uns “rodos” no Nate, mais para tentar pontuar do que para qualquer outra coisa. Mais me pareceu que o cowboy Cerrone lutou com medo, muito medo. Daqueles paralisantes. Não conseguiu fazer nada. Cerrone, durante os três rounds da luta, me fez lembrar um típico garoto texano bem-comportado que acredita cegamente nas forças do “bem” e do “mau” aprendidas nas missas diminicais de sua cidade, que sempre deve-se temer e evitar o “mau” a qualquer preço. Cerrone, de alguma forma, incorporou a idéia de que Nate representa todo o “mau” enquanto que, ele próprio, as forças do “bem”. Por isso lutou com medo, indubitavelmente. Mas, porque não o contrário? Ou melhor, porque alguém deve essencialmente ser do “bem” ou do “mau”? Como será que isso funciona?


Nietzsche em sua Genealogia da Moral debruçou-se sobre esse problema. Nessa sua obra, ele fez uma investigação profunda sobre os valores e interpretações originalmente atribuídos à algumas palavras. Por “originalmente atribuídas” já é possível perceber que, ao longo do tempo, as palavras eventualmente podem receber (e frequentemente recebem) diferentes sentidos e ou entendimentos daqueles inicialmente construídos. Isso, por si só, já pesa em desabono contra a idéia de que as coisas tenham alguma essência, no sentido de valor imutável.

Em suas pesquisas genealógicas sobre a origem da palavra “bom”, por exemplo, em diversas línguas, essa palavra possuía conotação de “nobre”, “aristocrático”, “mais elevado” e de “alma privilegiada” enquanto que a palavra “mau” possuía sentido de “plebeu”, “vulgar” e de “baixo”.

Essa é uma maneira realmente bem aristocrática de atribuir valores e que tinha como característica a espontaneidade. Remonta aos tempos das aristocracias primitivas guerreiras.

Como contraponto, tudo que não era considerado “bom” era, necessariamente, “mau”. Aqui, podemos perceber que esses conceitos eram mutuamente exclusivos e determinados sempre a partir da primeira palavra (“bom”) configurando, também, uma espécie de auto-afirmação.

Nessa avaliação por parte do nobre, as ações e virtudes de um guerreiro, por exemplo, eram interpretadas como potência, atividade e até mesmo felicidade. Assim, guerreiros sem essas características ou, de outro modo, infelizes, medrosos, covardes, mentirosos etc, eram representados como “maus”. Perceba que é a aristocracia que, ao impor seus valores, parte apenas de si própria e, a partir disso, afirma  ou nega valores, venera-os ou despreza-os.

Por outro lado, a palavra “mau”, agora do ponto de vista do plebeu, compreenderia, de modo contrário, as virtudes dos nobres: atitudes de ação, agressividade, dominação, espírito guerreiro, sua força etc. Segundo esse modo plebeu de interpretar, o “mau” estaria associado àquele que ataca, agride, fere e domina.

De acordo com o exposto, Nietzsche acaba por defender a idéia de que não existe uma única moral. Existem “morais”. A moral do nobre, a moral dos plebeus, dos cristãos, dos judeus etc.

Nessa luta, Nate Diaz, em razão de sua espontaneidade (fez o que queria) e de seu espírito guerreiro, agressividade e dominação (do começo ao fim) deixou bem claro quem pensa como nobre e quem age como escravo, segundo Nietzsche.

Jon Jones, Lyoto Machida e o Direito


No fim da madrugada de sábado para domingo (10 para 11 de dezembro de 2011) fui dormir com forte e desagradável sentimento de injustiça. Explico: Nessa noite de sábado aguardava com paciência oriental (herança de família) pela luta principal da noite no UFC 140: Jones vs Machida. Assumo que também me incluia entre aqueles que acreditavam que o Lyoto “The Dragon” Machida seria o único de sua categoria capaz de tomar o cinturão do então jovem, mas extremamente criativo Jon “Bones” Jones. Aliás, se fosse possível apontar um lutador que, de alguma forma, personificasse a evolução do MMA, esse lutador seria, sem sombra de dúvida, o próprio Jon Jones. Trata-se de um lutador que praticamente “passeia” pelas várias modalidades do esporte (Boxe, Muay Thai, Wrestling, Kickboxing, entre outras) com grande desenvoltura e beleza estética. Isso sem falar em sua impressionante capacidade de colocar em prática golpes e técnicas pouco usuais, fato que lhe rende status de showman.

Do outro lado, nosso karatê kid Lyoto Machida, nascido em Salvador, mas crescido em Belém do Pará, filho de uma baiana com um japonês mestre em Karatê. Toda vez que entra no octógono Machida é um legítimo representante do Karatê Kyokushin, uma modalidade que prioriza o knock out com um único golpe e de grande força. Em combates, essa modalidade é de grande utilidade. É de conhecimento de todos que Machida sempre foi mais de contra-ataque, isto é, de inicialmente esperar por algum movimento de ataque do seu oponente para, em seguida, reagir de modo mais adequado. Na realidade, esse traço acaba por revelar mais uma espécie de perfil do lutador. Outra característica que lhe é peculiar é que seus oponentes dificilmente o “encontram” no octógono. Possui uma capacidade de esquiva bem acima da média dos oponentes de sua categoria.

Vamos ao combate. Resumo do primeiro round: Pela primeira vez na história do UFC um lutador vence um round contra o, até então, inabalável Jon Jones. Machida “encontrou” Jon Jones várias vezes (umas cinco ou seis) no round, sem poder dizer o mesmo para Jon Jones. Esse não conseguiu encontrar Machida nem uma vez sequer! Tentou de tudo: socos, chutes altos, baixos, rodados. Para não dizer que não acertou nenhuma vez, Jon Jones deu um chute no braço de Machida. E mais nada. Por esse motivo Machida conseguiu algo inédito: surpreendeu Jon Jones a ponto de deixá-lo visivelmente assustado em vários momentos do primeiro round. Dias depois da luta, veio a público que dois (dos três) juízes laterais lamentavel e inexplicavelmente marcaram 10 a 9 nesse primeiro round para Jon Jones. Mas Machida fez, e estava fazendo, história.

No segundo round, Machida consegue mais uma vez surpreender Jon Jones mas, num momento de descuido, deixou Jon Jones derrubá-lo com double lag e infelizmente uma cotovelada entrou provocando um corte profundo na testa, já dando sinais de que essa luta poderia ter um desfecho desagradável. Posteriormente, Machida chegou a dizer que sua visão, em razão desse golpe, havia sido prejudicada. O juiz interrompe a luta para avaliação médica e nada de anormal foi constatado. Após o reinício, os dois golpearam-se quase que simultaneamente, mas Machida levou a pior. Resultado final: Machida foi finalizado na grade, em pé, com uma guilhotina que, admito, nunca tinha visto antes.

O problema, do meu ponto de vista, não está tanto no fato de Machida ter sido finalizado ou de ter perdido a luta, mas no que se sucedeu. A regra do UFC diz que em caso de estrangulamento, se o lutador não desistir com batidas no chão do ringue (com os pés ou com as mãos) ou verbalmente, o juiz deve intervir e será decretado o fim da luta. Ao perceber que Machida estava “apagado” de pé, o juiz faz, corretamente e no tempo certo, a intervenção e o fim da luta é anunciado. Em seguida, Jon Jones, com desdém e desleixo, solta o corpo do atleta que já estava “apagado”. A luta já estava encerrada! E quando o árbitro encerra a luta é para preservar a integridade do atleta. Por meio de uma consulta rápida ao dicionário pude constatar que a palavra integridade está precisamente definida como qualidade de alguém ou algo ser íntegro, de conduta reta, pessoa de honra, ética etc. Ainda que tudo tenha ocorrido dentro das regras, achei que Jon Jones faltou com respeito, não foi justo, diria, com Machida.

Mas isso soa estranho, não é? Como algo pode soar injusto, se não desrespeita as regras? Aliás, o que vem a ser justiça? O que os filósofos têm dizer sobre isso? Não tenho, nem de longe, a pretensão de abordar em toda a sua amplitude o conceito, a idéia de justiça, mas o que alguns pensadores já escreveram sobre isso?

Há aqueles que a entendem como uma virtude, há outros que a entendem como uma espécie de sentimento, desejo, há também aqueles que entendem como um conjunto de princípios e aí a coisa vai longe.

Se nos atentarmos para a idéia de justiça na qualidade de um sentimento, esse seria próprio da consciência humana, no sentido de que somos todos dotados da capacidade de discernimento (saber diferenciar o “bem” e o “mal”, o “justo” do “injusto”). Mas, segundo Chevallier (Jean-Jaques), não existem coisas tais como o bem e o mal. Adjetivos como o bem e o mal só servem para referenciar ou dar algum sentido àqueles que o empregam. Para ilustrar melhor, o que chamamos frequentemente de valor das coisas não trata especificamente sobre o que elas (coisas) carregam, mas sobre o que depositamos nelas. Dizer que algo é essencialmente bom ou mal é cair no auto-engano, uma vez que o ato de dizer não equivale a uma prova ou demonstração rigorosa. Dessa maneira é estranho dizer que é possível conhecer, em absoluto, a essência de algo.

Por outro lado o jusnaturalismo (ou direito natural) apresenta uma outra proposta para a idéia de justiça. Thomas Hobbes sustentava que o estado natural do homem seria o de guerra. Nesse sentido, todos os homens seriam naturalmente iguais. Para a satisfação dos instintos mais básicos, valeria tudo, inclusive o aniquilamento dos outros, pois esses seriam sempre uma ameaça. O interessante a notar aqui é que, nesse contexto, não pode haver injustiça dado que não há leis. O que prevalece, nesse caso, é a liberdade de todos preservarem a sua existência vivendo de acordo com aquilo que se convencionou chamar de direito natural.

Aqui um ponto começa a ficar mais claro: começa a se estabelecer cada vez mais a idéia de justiça que será amplamente aceita e utilizada até os dias de hoje. A idéia de que justiça/injustiça está condicionada, isto é, só pode existir num mundo em que há lei(s). Do contrário, não é possível caracterizar o que é justo e, consequentemente, o que é injusto.

Mas, ainda sim, acho que tem algo de estranho. Será que um sentimento de injustiça deixaria de emergir em alguém pelo simples fato de inexistir uma lei? Segundo essa idéia, não seria possível falar em injustiça. Mas a idéia de justiça está baseada também em uma espécie de sentimento, desejo. Portanto, a inexistência de uma lei não é capaz de impedir que um sentimento de injustiça floresça. Em alguns casos pode-se, inclusive, sugerir exatamente o contrário.

Em tempos mais atuais, Kelsen prefere pensar a justiça como uma felicidade social, como se fosse fácil definir felicidade. Para uns é uma coisa, para outros vem a ser outra. Para alguns, pode se tratar de um conceito mais materialista enquanto que, para outros, a felicidade pode ser, na realidade, a infelicidade de outros. Dinheiro, bens, emprego, esporte são alguns exemplos, de modo que a idéia defendida por Kelsen também apresenta problemas.

Assim, fica complicado chegar a um consenso sobre o significado da palavra justiça (também não sei se esse seria o caso) e podemos perceber que diferentes sentidos foram sendo atribuídos para essa palavra ao longo do tempo.

As, com relação ao meu mal-estar do início desse artigo, só posso afirmar que, mesmo sem saber precisamente o seu sentido, senti-me, naquela madrugada, incomodado e com um profundo sentimento de injustiça...

Jon Jones, Maurício Shogun e a Grécia Antiga


No UFC 128 fui testemunha de um pesadelo. Assisti, com os meus próprios olhos, Maurício Shogun perder o cinturão de campeão dos pesos médios para o jovem Jon Jones. Não que exista algum problema com isso. Não é nada disso. O que me chocou foi a maneira como tudo aconteceu. Não consegui entender a luta e, em razão disso, não pude digerir ou aceitar os fatos. Quem conhece o Shogun, o histórico de suas lutas, sabe que com ele não existe luta fácil. Desde a época do saudoso Pride no Japão, evento do qual alguns lutadores brasileiros da época como Rodrigo Minotauro, o próprio Shogun, Wanderlei Silva e outros, tornaram-se lendas do MMA, quem acompanha a carreira do Shogun sabe que suas lutas costumam ser históricas, apenas para economizar nas palavras. Extremamente disputadas e com frequentes reviravoltas, se tocar o telefone em casa, é melhor pedir para alguém atendê-lo senão...
Shogun conquista o cinturão sobre o karateca (também brasileiro) Lyoto Machida no UFC 113 (maio de 2010) que foi, na realidade, uma revanche de um encontro anterior (UFC 104) em outubro de 2009, no qual os juízes tinham dado vitória por pontos para o karateca. Como a vitória por pontos para Lyoto Machida no primeiro encontro suscitou muitas dúvidas, fizeram uma segunda luta e, aí sim, Shogun venceu por knock out.
Após conquistar o cinturão, foi direto para a mesa de cirurgia (joelho). A carreira do Shogun passaria a ser marcada também por uma série de lesões e cirurgias. Não que anteriormente ele nunca tivesse passado também por isso. Mas, ao que tudo indica, foram duas cirurgias de joelho em menos de dois anos, sendo que uma delas bem séria (sem poder colocar os pés no chão por seis meses), lesão no ombro e sabe-se lá se existiram outras no caminho...
Dez meses depois presenciei, no UFC 128 (aquele que seria sua primeira defesa de cinturão), um Shogun apático, sem aquele dinamismo característico de suas lutas. Pareceu-me um Shogun machucado, muito aquém daquele Shogun que todos conhecemos. Com certeza, muito abaixo dos 100%. Se fosse possível quantificar diria, tranquilamente, que lutou menos de 50% daquilo que sabe. Mas devido a que? Por qual motivo Shogun se encontraria nessas condições? Por que aceitou lutar assim se não estava em condições? Nunca vi Shogun numa situação como essa: além de não dar trabalho algum para seu adversário, perder dessa maneira, submetendo-se a um castigo daquela monta. O que deve ter acontecido? Fiquei sem entender...
Meses depois, ocorreram umas reviravoltas no mundo do UFC. O presidente da organização, Dana White, retirou o cinturão do campeão canadense Georges St. Pierre, também conhecido como GSP, por sofrer lesões em série por dez meses, impedindo-o de defender o cinturão. Agora, GSP seria uma espécie de campeão interino da categoria e a partir da luta entre Nick Diaz e Carlos Condit (UFC 143) sairia o novo campeão que, para efetivar-se no cargo, teria que lutar com GSP quando esse estivesse recuperado.
Essa notícia me fez repensar o caso do Shogun vs Jon Jones. Teria o Shogun sofrido pressão para lutar ao custo de tornar-se campeão interino da sua categoria, também em razão de um longo período sem lutar em função de cirurgias e lesões? E o pior: longe da sua forma ideal? Caso essa hipótese esteja correta, Shogun teria que fazer uma escolha: lutar, sabendo dos riscos que corria de perder o cinturão, em razão das condições em que se encontrava ou aceitar o título interino. Como todos já sabemos, decidiu pela primeira. Ah! Eis a sina do herói grego...
Hoje em dia já estamos acostumados a enterrar nossos entes queridos em cemitérios, especificamente em tumbas que contenha o nome esculpido ou pregado em algum tipo de placa. Mas, na realidade, já nem sabemos mais a origem desse hábito. Antigamente, os mortos não eram necessariamente enterrados, muito menos seus nomes lembrados. Somente aqueles que tivessem realizado um feito muito grandioso em vida é que mereciam ter seus nomes lembrados para a posteridade. Alguém que, na tradição grega, fosse considerado um herói. E na Grécia, os heróis andavam de mãos dadas com a tragédia.
A tragédia é uma espécie de arte que exerce forte influência na literatura, no teatro, na poesia etc, até os dias de hoje.
A concepção trágica de mundo, aquela que acompanha os heróis, constitui uma idéia (grega) de um destino que não se supera, não se vence; pode até parecer que se está vencendo mas, no final, a derrota é inevitável. Essa concepção de mundo exige daqueles que a adotam, certa maturidade, uma vez que não é de seu feitio cultivar utopias e, assim, não cria grandes esperanças.
A visão trágica do mundo, ao contrário do que se possa supor, não significa um convite para vivenciar situações de desespero e ou de agonia. É uma afirmação, uma escolha pelo próprio destino, de que vale a pena enfrentar o destino, ainda que no final você seja derrotado por ele. Assim, os heróis, dentro desse contexto, possuem a coragem como característica marcante ou virtude. Por esse motivo, a felicidade não é um assunto que lhe chame a atenção ou um objetivo de vida. O herói vive, na realidade, um dilema: ter coragem de fazer aquilo que sua consciência pede ou submeter-se às leis e costumes (trabalho, família, sociedade)?
Ao escolher a primeira, o herói acaba por inspirar admiração nos outros (maioria) que escolheriam a segunda opção, mesmo sabendo que no final ele será devorado.
O caso, talvez, mais popularmente conhecido de um herói grego é o de Aquiles na guerra de Tróia. No filme, Aquiles deve escolher entre: (i) ir para a guerra com grandes riscos de morrer e (ii) ficar e viver. Como bem sabemos, escolheu a primeira. Assim, é a coragem (e não a felicidade) a métrica do herói grego.
Ao analisar por essa ótica, Shogun, ao adentrar no octógono do UFC 128 você foi o nosso herói grego, no nível mais profundo que essas palavras possam significar...